Tesão sem alcoól é amor?

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Epifania
"Além do horizonte deve ter um lugar bonito para viver em paz.
Lá neste lugar o amanhecer é lindo com flores festejando mais um dia que vem vindo”


Ela se despediu dos colegas de repartição no final do expediente, dizendo que faltaria no dia seguinte. Ninguém quis saber o porquê. Mesmo assim, sussurrou com alegria sua façanha:
- Vou pular da Ponte Rio-Niterói!
E esta foi de fato a decisão que tomara na noite anterior quando se deparou com as águas turvas do Rio Paraíba sob a ponte velha. Não conseguiu se imaginar afogando naquelas águas poluídas de resíduos industriais e esgoto doméstico. Estranhamente teve nojo. Sabia que os bombeiros nem se dariam ao trabalho de procurar seu corpo, o mesmo seria encontrado todo inchado e deformado na represa de Piraí.
Queria uma morte glamourosa, de insípida bastava a vida que vinha levando e além do mais, não queria ser encontrada. Nos últimos meses tinham decidido não tomar mais ansiolídicos para depressão e decidiu romper definitivamente o lacre da vida. Ela decidiu matar por dentro um corpo que por fora já se encontrava putrefato há muito tempo. Não seria um suicídio e sim uma eutanásia.
Não se preocupou com testamento nem com cartas de despedida. Não tinha nada para deixar para ninguém, mas também não tinha ninguém para deixar nada. Sua mãe se matou quando ela ainda era uma menina. Seu avô se matou quando sua mãe ainda era menina. Parece ser este o único legado que lhe fora deixado. Foi criada por uma tia que também já tinha morrido, morte natural, esclareço! Nunca se casou. Nunca namorou. Nunca se olhava no espelho.
Diferentemente das pessoas de sua idade e solitárias, detestava grupos, reuniões e afins. Odiava gatos, cachorros, pássaros e crianças... Tudo que fizesse barulho e se deslocasse por legítima vontade.
Jamais estivera no Rio. Pouco saía da cidade em que nasceu. Prima Alba, uma parenta distante de sua mãe, casada com um motorista dos Correios, dizia ser o Rio, o lugar mais lindo do mundo. Ela duvidava que Prima Alba conhecesse tantos lugares bonitos assim. Duvidava da beleza das praias. Duvidava do bonde, dos doces da Colombo, das viagem de barca, dos passeios de charrete em Paquetá. Duvidava da existência de algo como um Cristo de braços abertos no alto de um morro. Mesmo sem conhecer, duvidava de qualquer forma de encanto da cidade.
Prima Alba sempre a convidava para um passeio. Ela, criança esmilingüida, maltrapilha e maltratada, tinha a esperança de que, um dia, como forma de castigo, a mãe a obrigasse a ir com a prima para um passeio ao Rio. Este dia nunca chegou. Prima Alba, depois de alguns anos, sumiu. O tempo passou e ela já não desejava mais nada da vida. Só a morte.
Desembarcou na Novo Rio entusiasmada com a idéia da própria morte. Usava um vestido azul, para combinar com o mar. É era só no mar que pensava. “O mar, o mar, o mar... “
Pegou o primeiro táxi que se ofereceu. Por um instante se viu refletida no vidro do carro e achou-se bonita. Acomodou-se e instruiu o itinerário: Ponte Rio-Niteroí.
Achou a manhã de primavera linda. Estranhou o fato. Nunca se importara com o tempo, com a chuva, com a lua ou tivera preferência por alguma estação do ano. Resolveu conceder a si mesma um último desejo: conhecer o Rio. Adiaria por algumas horas seu suicídio.
Logo no início do trajeto, ela se deparou com a imagem do Cristo onipresente, onipotente, quase onírico. Ele, a testemunha ocular de uma cidade a sua volta. Sentiu um ligeiro mal-estar, uma vertigem, um leve desespero.
Engarrafamento. “Tantos carros!”. E as buzinas faziam sinfonia. Era o seu requiém. E como cenário a Glória, o Aterro do Flamengo, a Enseada Botafogo, calçadão de Copacabana, Pedra do Arpoador, Praia de Ipanema. A visão do mar a emocionava. Pela primeira vez na vida (e pela última, pensava ela). Encantou-se e regozijou-se com tudo ao seu redor. No início do percurso, ouviu no rádio do táxi “Samba do Avião”. Achou bonita a canção inédita para seus ouvidos. Nunca gostou de muito de música. Agora a tal canção era recorrente em sua cabeça: “Minha alma canta vejo o Rio de Janeiro... Cristo redentor braços abertos...”
Começou a sentir uma sensação incômoda de estranheza. Decidiu voltar ao itinerário inicial: Ponte Rio-Niteroí. Ouviu neste instante:“O mundo é um moinho”. Achou a música inoportuna. Estava resolvida a morrer antes que as estranhas sensações domassem seu corpo e sua vontade. Era o seu legado. Já não tinha mais tempo para aprender a viver nem para ser feliz...
Novamente, deparou-se com a imagem do Cristo Redentor. Nova vertigem. Sentiu-se muito mal. A cada esquina que passava, renascia um pouco a sua vida. Já não se sentia a mesma pessoa que desembarcou do ônibus pela manhã. Sentiu um amor incontrolável por si mesma e uma vontade de viver. Queria caminhar pelas ruas, cantar, abraçar alguém. Redenção de sentimentos.
Achou, por um momento, que enlouquecia. “Não posso desistir agora!”. Desceu do táxi em Copacabana. Atravessou com pressa o calçadão e passou correndo pela faixa da areia. Ansiedade. Sentiu um ligeiro tremor no corpo quando adentrou no mar... Afundou.


Hoje depois de tantos anos, ela conta que não sabe o que aconteceu depois. Se lembra apenas de ter acordado na areia da praia, em meio uma multidão que assistia a um entardecer de nuvens e raios de luz, quase uma epifania divina. Acha que foi devolvida à vida pelas ondas do mar de Copacabana com a cumplicidade do Cristo Redentor...
Pediu aposentadoria. Foi morar em Copacabana. Acredita estar realmente em uma cidade maravilhosa. Faz dança de salão. Freqüenta o Bola Preta. Fez amigas e amigos. Adora passeio de charrete em Paquetá. Tem um poodle. Vai à praia todos os dias. Ao salão, toda semana. Faz check-up a cada 12 meses. E morre, morre de medo da morte.