Tesão sem alcoól é amor?

sábado, 4 de agosto de 2007

Os livros na estante

“O meu coração dispara quando sinto seu cheiro dentro de um livro.”

“Você tem mais livros na estante. Para ser exato uma prateleira a mais”. Depois de quase três anos sem entrar naquele apartamento, a única coisa que ele foi capaz de notar de diferente foi a prateleira da estante, ou melhor os livros da estante. Talvez os tenha notado na possibilidade de inventariar quais eram os dele.

“Não, obrigado, não quero nada para beber”. “Café, também não, gastrite” e apontou para a barriga. Ele bem sabia que a gastrite não era novidade mas quis aguçar a lembrança dela. Fazia muito tempo que não se viam e o encontro por acaso, logo na entrada do prédio, logo em noite de chuva, os deixou de saia justa, ambos tentando ser simpáticos, ela o convidou para subir e ele aceitou o convite até a chuva passar. Ela estranhou o fato dele não portar um guarda-chuva, ele era maníaco por previsões do tempo. Ele intuiu que o fato de ter esquecido o guarda-chuva no escritório e tê-la encontrado, enquanto caminhava cuidadosamente sob a marquise do prédio que morou para não se molhar, não era mera coincidência.

Ela tentava a todo custo evitar atracar lembranças no cais de seus pensamentos, afinal fora preciso muita terapia e diaforin para voltar a se sentir feliz. Não tinha notícias dele desde que parou de bisbilhotar o orkut. Precisou de frequentar muitas reuniões de viciados em sexo virtual anônimos para se livrar do vício. (O vício em sexo virtual e em bisbilhotar orkut dos outros mexe com a mesma química do cérebro).

Mas ela neste tempo todo foi incapaz de esquecê-lo. Dias de chuva a faziam lembrar dele; um novo livro de J.K. Rowling na praça; vitamina de abacate; ouvir “Último Romance”. (Toda recordação ocorre de forma sinestésica. Um cheiro, uma cor, uma música, um sabor). Os livros na estante eram provisão para a solidão de quase três anos. (Os livros na estante são sempre placebo para qualquer tipo de solidão).

“E aí como vai aquele seu pessoal lá de Lumiar? Gente boa, né!”. Na verdade ele não queria mesmo saber dos amigos dela donos de uma pousada em Lumiar, só queria engatar uma conversa antes que o clima ficasse muito pesado. Ela se sentou com uma xícara de café na mão e contou que estavam todos bem e que a pousada havia sido ampliada. Ele notou que os hábitos dela haviam mudado, ela bebia café àquela hora, ela sempre foi “portadora” de insônia. Ela bebia café por falta de reação para fazer qualquer outra coisa que a deixasse mais à vontade.

Lembrar de Lumiar foi péssimo, nem a hospitalidade dos amigos a fariam pisar naquele lugar de novo. Dá para acreditar que depois de uma noite maravilhosa, uma céu cheio de estrelas, alguém seja capaz de dizer que não sente mais o que sentia antes por você? (“I dont love you like I did yesterday” parece música, e é My Chemical Romance.) Não dá para esperar e dizer em outro momento, durante um enterro, durante o horário político, na fila de banco, em um engarrafamento.

Ele só percebeu que fez o comentário errado quando terminou de fazê-lo. Tentou emendar: “Este livro de Marçal Aquino é ótimo”.(Ele se refere a “Eu ouviria as piores nóticias de seus lindos lábios”, muito bom mesmo!). Ela não comenta mas ela deu um exemplar do livro a ele semanas antes de terminarem. Ela examina o quanto a mente dele pode ter apagado tudo assim tão fácil. Por quase dois anos morreu de saudades dele, e ele nem se lembra que a feriu em Lumiar e que o livro que elogia, ela quem deu a ele. (Sentir saudades é como morrer engasgado com o próprio vômito).

Ele continuava em pé olhando os livros na estante. Nenhum comentário fez sobre as fotos dos porta-retratos, nem sequer a percebeu em meio à neve com a Eifel no fundo. Falou algo mais sobre Amós Oz e deu parabéns pela aquisição de um “Ulisses” traduzido pelo Houiass. Quando ao virar e a olhar pela primeira vez com atenção, percebeu olhos fundos e rasos de água com que ela lhe retribuia o olhar. Não achou nada melhor para dizer do que “acho que a chuva diminuiu, já dá pr’eu ir embora”. Ela se levantou prontamente e seguiu em direção a porta. Num abraço a meia distância, se despediram.“Bom te ver”.

Ela não dormiu a noite toda. (É bem possível afirmar que passou insone o resto de suas noites). Ele jurou nunca mais esquecer o guarda-chuva e sempre seguir o conselho da meteorologia. Jurou, ainda, nunca mais pisar sobre a calçada sob a marquise do prédio que morou.